BBB, opressões e interseccionalidade

Lana de Holanda 🏳️‍⚧️
4 min readApr 14, 2020

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Nos últimos dias, com a enorme popularidade dessa nova edição do BBB, inclusive entre uma bolha de esquerda que, até então, torcia o nariz para o programa, vários debates típicos da militância têm se multiplicado nas redes sociais, principalmente no Twitter.

Vimos um grupo de mulheres feministas, logo classificadas pelo público como “fadas sensatas”, entrando em contradição no que se refere aos seus privilégios de raça. Vimos um homem negro que possui conhecimento de todas as opressões raciais impostas ao povo preto brasileiro, mas que ainda assim se aliou a homens brancos misóginos dentro do programa. E vimos, mais recentemente, a diferença de pesos e medidas do público, quando a crítica é dirigida a um homem negro ou a uma mulher negra.

A edição do BBB 2020 pode ser comparada até certo ponto com um coletivo de movimento estudantil, ou qualquer outro grupo sério, que milite de forma organizada. Existe consciência e vontade política, mas isso não impede que as contradições apareçam. Contradições essas que estarão sempre presentes, quando existirem seres humanos reunidos e organizados.

E com todo o debate gerado pelo público, temos visto alguns textos e publicações que chegam a beirar o absurdo, principalmente para as pessoas que há muito mais tempo tem se debruçado sobre o debate das opressões de gênero, raça e classe. Quem se referencia em autoras como Angela Davis e Audre Lorde, provavelmente se assustaria com a quantidade de tweets que reivindicam que uma opressão é mais importante que a outra e que, por exemplo, “mulheres brancas não podem ser oprimidas por homens negros”, ou que “as mulheres serão sempre vítimas, mesmo que brancas”, ou ainda que “o homem negro é a figura mais oprimida da sociedade contemporânea”.

Uma coisa é importante deixar nítida nesse ponto: por mais que o BBB gere todo um importante e interessante debate, uma vez que é impossível olhar aquelas relações sem as medirmos pela régua social usada aqui fora, no nosso cotidiano, ainda assim o Big Brother não é a vida real. E a militância real (que, enquanto uma ecossocialista, feminista interseccional, eu defendo que deva ser organizada, seja em coletivos, movimentos ou partidos) também não se dá puramente através da internet. A internet, e todos os debates gerados nela, são extremamente importantes (e tendem a se tornar cada vez mais). Mas a internet em si, é, na maioria das vezes, apenas o reflexo da elaboração feita pela militância organizada, reverberando o trabalho, os acontecimentos e as polêmicas de ativistas, figuras públicas, lideranças, parlamentares e acadêmicos que estão executando seu trabalho em diversas organizações e instituições, para além das redes sociais.

Dito isso, entendendo que o debate não começa nem termina no mundo digital, coloco aqui alguns pontos que publiquei no Twitter, diante de toda essa confusão sobre o sistema de opressões e diante da falta de entendimento sobre interseccionalidade, esse termo que é tão caro, tão importante e ao mesmo tempo tão distorcido. Falta de entendimento essa que, repetidas vezes, não parece ser um acidente, mas um propósito, para manter inalteradas algumas estruturas e travar a possibilidade do debate.

  1. Uma opressão não se sobrepõe à outra! Não existe olimpíadas de opressão. Raça, classe e gênero se cruzam o tempo todo! E classe existe, viu? É um recorte muito importante. Não é algo aleatório ou invisível. Pelo contrário, é algo explícito e também determinante.
  2. Uma mulher negra, por exemplo, sofre o tempo todo opressão por ser mulher E por ser negra. E essa mulher, sendo rica ou classe média alta, sofre outras formas de violência em relação a uma mulher também negra, só que pobre, periférica ou favelada.
  3. Não é que a mulher rica estará imune ao racismo e ao machismo. Mas essa violência se dará de outras formas, menos violentas ou menos explícitas pelo menos, do que a sofrida pela mulher negra trabalhadora e moradora de favela, por exemplo.
  4. E é impossível dizer qual opressão vem antes na vida de uma pessoa. Uma travesti indígena, por exemplo: sofrerá mais racismo ou mais transfobia? Ou vai depender da situação em si? Os dois marcadores estão ali, o tempo todo, como possibilidades de opressão social.
  5. E se uma travesti, independente de seu marcador racial, tiver uma situação de classe que lhe possibilite acesso a métodos que garantam uma passabilidade? Ela sofrerá o mesmo que uma travesti pobre, periférica, não passável?
  6. Mulheres e homens, de uma mesma classe e um mesmo marcador racial, sofrem opressão da mesma forma? Obviamente que não, pois o gênero é um recorte profundo, numa sociedade como a nossa, moldada sob o capitalismo, o racismo e machismo.
  7. Mulheres ricas podem oprimir homens pobres, por conta da classe. Homens negros podem oprimir mulheres brancas, por conta do gênero. Homens brancos e mulheres brancas oprimem mulheres negras e homens negros, por conta da raça. Tudo se cruza, o tempo todo!
  8. O conceito de interseccionalidade, cunhado por Kimberlé Crenshaw é extremamente necessário, para que a gente combata os males do racismo e do machismo (apropriados e alimentados pelo capitalismo) sem distorções que travem nossa luta.
  9. A gente precisa superar o capitalismo, acabar com o machismo e patriarcado e romper com as estruturas racistas, que literalmente mataram nossos antepassados e segue matando muitos, ainda hoje. Mas a gente não pode apagar ou distorcer o que foi dito pelas que vieram antes de nós.

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Lana de Holanda 🏳️‍⚧️

Comunicadora feminista e poeta. Latin America + Human Rights + Feminism. “Quem não se movimenta, não sente as correntes que o prendem”, Rosa Lux.